Terminamos a primeira fase do Palco Giratório, em Santa Catarina (ainda faremos Florianópolis) e estamos nos preparando para viajar no dia 08 de abril para Fortaleza, onde vou reencontrar meu querido João Paulo Pinho e Feira de Santana, com duas apresentações e cursos. Enquanto isso vamos aqui em Curitiba fazendo METAFORMOSE LEMINSKI, no Festival de Teatro. Há dois anos quando fizemos O EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS no Festival, o querido Valmir Santos, um dos mais respeitados críticos e estudiosos do teatro brasileiro, fez uma crítica mais do que positiva e bela do nosso trabalho. Vale aí reproduzi-la porque o que é bom vale a lembrança. Ah! Essa temporada teve também a estreia do Guilherme Fernandes fazendo o nosso Jesus, que era feito pelo Marcelo Rodrigues.
BUENO FOMENTA CONTRADIÇÕES BÍBLICAS – por Valmir Santos
A arte costuma encontrar nas passagens bíblicas um terreno fértil. O Grupo Delírio, de Edson Bueno, assenta o seu com O Evangelho Segundo São Mateus, o livro do Novo Testamento farto em metáforas que Jesus teria proferido. A tentação em traduzir metáforas em cena pode ser maçante. Felizmente, o espetáculo foge ao dogma e aproxima-se das escrituras sagradas com alguma profanidade, tornando-as mais reveladoras e instigantes do que reza a liturgia. Salmos e versículos viram plataformas para explorar o campo das ideias, da filosofia, da poesia e do cinema com invocações a Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Nietzsche, Pasolini. Esse nível de elaboração é tributado ao modo como Bueno preza a palavra em seus trabalhos. Aqui, o verbo é ainda mais poderoso, por isso demanda atores que articulem bem a fala, que expresse entendimento do que diz, comunique o colorido de cada vocábulo. E o elenco o cumpre a contento. A incorporação de versos do poema oitavo de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, dá o tom do pensamento crítico no trato com os fundamentos religiosos e a urgência em humanizar o mito. O poeta português escreve sobre a visão de um Jesus menino que corre atrás de raparigas, desdenha do Pai, rouba milagres. “Ele é o humano que é natural/ Ele é o divino que sorri e que brinca/ E por isso é que eu sei com toda a certeza/ Que ele é o Menino Jesus verdadeiro”. É a esse espírito que a peça corresponde. Na sessão a que assistimos, impressiona a atuação naturalista do elenco em meio ao feitio coletivo do pão enquanto contam o Evangelho. Diego Marchioro, Luiz Carlos Pazello, Guilherme Fernandes (em revezamento com Marcelo Rodrigues de Oliveira), Martina Gallarza e Regina Bastos estão longe de um jogral ou de um coro com suas marcações. Ao contrário, põem-se serenos e serelepes, graciosos na medida, sem banalizar as entrelinhas. Com o quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, suspenso ao fundo, os atores ocupam a cozinha do que poderia ser uma padaria: mesas e cadeiras de madeira, aventais, vassouras, utensílios e ingredientes para fazer a massa. Sob luz dominantemente geral, “branca”, eles entabulam as fábulas com leveza, olhos firmes no espectador. Nem precisa romper a quarta parede, pois a conversa está dada, mas o espetáculo vai além e reafirma a comunhão extensiva ao encontro do artista com o público. Partilha vinho, café e pão (fruto da massa preparada no dia anterior), inclusive convidando parte da platéia a juntar-se à mesa na cena da Santa Ceia. Em duas décadas e meia de Grupo Delírio, Edson Bueno diz buscar agora “um teatro muito no presente e que se compreenda cada vez mais como uma experiência no vento, como disse Peter Brook”, escreve no programa do espetáculo. Seu Evangelho Segundo São Mateus é luminoso não só pelo conteúdo humanista, mas por não desprezar o vetor da arte em nenhum momento, o que confere consistência poética à montagem da qual toda a equipe parece se apossar. Parafraseando Mateus, eis uma criação prudente como a serpente e simples como o pássaro.